Uma ponte sobre a grama: escuta poética entre vozes e espectros na tradução de Lana Del Rey por Alana Carolina Martins
Uma ponte sobre a grama: escuta poética entre vozes e espectros na tradução de Lana Del Rey por Alana Carolina Martins
Por Larissa Lins*
A poesia de Lana Del Rey (Elizabeth Woolridge Grant, 1985) se insere, ainda que por caminhos tortuosos, em uma linhagem de autores e autoras que fizeram da iconografia dos Estados Unidos com seus mitos, paisagens e ruínas matéria de elaboração estética. Poetas canônicos como Wallace Stevens (1879—1955), por exemplo, souberam tensionar as imagens fundacionais da América do Norte (o sol, a terra, a fronteira, a casa) para desestabilizar certezas e reinventar o sublime em chave moderna. Del Rey, por sua vez, trabalha com símbolos igualmente marcantes (a cidade de Los Angeles, os carros conversíveis, o pôr do sol na Califórnia, os dentes-de-leão, os fogos de artifício), mas faz disso uma performance da intimidade e da exposição emocional. Em vez de afirmar um imaginário heroico ou abstrato, sua poesia opera por contraste e fratura: estetiza o colapso, amplifica a melancolia e investe na vulnerabilidade como campo de força. Se Stevens procurava “a ideia de ordem” na flor da realidade, Lana Del Rey explora o excesso de sentido e de afetos nas ruínas da fantasia estadunidense.
É, aliás, na performance da vulnerabilidade que a obra de Lana Del Rey se aproxima de uma genealogia de escritoras que colocaram a experiência feminina no centro da criação, explorando afetos considerados “impróprios” ou “excessivos” à luz das convenções patriarcais. Edna St. Vincent Millay (1892–1950), por exemplo, já mobilizava, nas primeiras décadas do século XX, o erotismo, a frustração amorosa e o desejo de liberdade por meio de um lirismo performático que subvertia o ideal romântico tradicional da mulher recatada, contida e devotada. Como observa Nancy Milford (2001), Millay foi “a primeira figura americana a rivalizar com a adoração pessoal, até mesmo o frenesi, que cercava Byron, em que o poeta, em sua própria pessoa, encarnava o ideal romântico. Era sua vida tanto quanto sua obra que chocava e encantava seu público. Edna Millay foi a única mulher americana a atrair tais multidões. Seu eu performático fazia as pessoas sentirem que tinham visto a musa viva e ao alcance das mãos. Riam com ela e se emocionavam com sua poesia. Apaixonada e encantadora, ou leve e altiva, ela não apenas os fazia levantar dos assentos, ela os trazia para si” (Milford, 2001, p. 4, tradução minha)[1]. Ainda que Del Rey não se anuncie leitora de Millay, sua persona lírica parece atualizar essa linhagem ao transformar a dor em estética e a exposição afetiva em gesto político.
É também nesse ponto que sua obra se aproxima, de maneira decisiva, da escrita de Sylvia Plath (1932 — 1963), poeta que, agora, sim, Lana Del Rey referencia e reverencia abertamente. Assim como Plath, cuja poesia dramatiza a experiência do trauma, da exclusão e da intensidade afetiva em uma dicção lírica aguda e imageticamente densa, Del Rey investe na elaboração poética da dor e da identidade ferida como gesto de confrontação. Ambas constroem vozes poéticas que emergem do conflito entre o íntimo e o público, entre o feminino e a violência simbólica a que ele é submetido. Se Plath expõe o abismo emocional com linguagem cortante e imagens carregadas de tensão, Del Rey atualiza esse gesto em registros ora confessionais, ora performáticos, compondo uma espécie de “diário poético” atravessado por ícones da cultura de massa e pela ironia trágica de um eu que deseja ser amado por aquilo que o destrói. Sua linguagem, ora narrativa, ora fragmentária, compõe um lirismo de suspensão, feito de gestos contidos, silêncios ruidosos e imagens que oscilam entre o banal e o enigmático.
Publicado originalmente em 2020, Violet Bent Backwards Over the Grass, de Lana Del Rey, reúne 29 poemas, entre eles 10 haicais. Desses, 14 foram selecionados para compor um audiolivro interpretado pela própria autora. A obra foi recebida com a curiosidade reservada aos projetos de artistas que transitam entre gêneros. Poeta-cantora ou cantora-poeta, Lana Del Rey transforma a escrita em extensão de sua persona pública, uma figura espectral e performática, sensível ao colapso entre o sublime e o kitsch, entre a nostalgia e o artifício. Em 2025, o livro chega ao Brasil em tradução de Alana Carolina Martins, publicada pela editora Belas Letras, em edição marcada por notável sensibilidade gráfica e curatorial, um gesto de escuta e reescrita que merece atenção crítica.
Publicada originalmente em 2020, Violet Bent Backwards Over the Grass, de Lana Del Rey, foi recebida com a curiosidade reservada aos projetos de artistas que transitam entre gêneros. Poeta-cantora ou cantora-poeta, Lana Del Rey faz de sua escrita uma extensão de sua persona pública: uma figura espectral e performática, sensível ao colapso entre o sublime e o kitsch, entre a nostalgia e o artifício. Em 2025, a obra chega ao Brasil em tradução de Alana Carolina Martins, publicada pela editora Belas Letras em uma edição de notável sensibilidade gráfica e curatorial, um gesto de escuta e reescrita que merece atenção crítica.
Violet faz a ponte sobre a grama evidencia um cuidado editorial que contribui diretamente para a forma como a obra é recebida e interpretada pelo público leitor. A editora Belas Letras, conhecida por projetos que cruzam literatura, cultura pop e design, propõe aqui uma apresentação visual coerente com o universo poético de Del Rey: tipografia reminiscente de máquina de escrever, espaços generosos na mancha gráfica, e o nome da autora em destaque, mais como signo estético do que como simples assinatura. Trata-se de um trabalho de curadoria que não apenas veicula o livro, mas o interpreta e o reposiciona para o contexto do sistema literário brasileiro.
Essa mediação editorial encontra respaldo na teoria de André Lefevere, que compreende a tradução como parte de um sistema mais amplo de reenquadramento (reframing)[2], no qual agentes como tradutores, editores, críticos e designers atuam na adaptação das obras a contextos ideológicos e poético-culturais específicos (Lefevere, 1992). Para o autor, o texto traduzido nunca circula de forma neutra ou isolada: ele está sempre mediado por paratextos, a exemplo de capas, prefácios, notas, escolhas gráficas, que moldam os horizontes de leitura e influenciam diretamente sua recepção. Sob essa perspectiva, a edição brasileira de Violet faz a ponte sobre a grama, publicada pela Belas Letras, atua como uma instância de legitimação, contribuindo para consolidar Lana Del Rey não apenas como ícone da cultura pop, mas como autora reconhecível e respeitável no campo da poesia contemporânea em tradução.
Entretanto, esse gesto curatorial se tensiona com uma decisão editorial significativa: a ausência do texto original na íntegra em inglês. Apenas algumas imagens de poemas datilografados, com correções de caneta, trazem a voz de Lana Del Rey em sua língua nativa. Em um país onde a publicação bilíngue de poesia traduzida se consolidou como prática editorial, especialmente a partir da atuação de Haroldo e Augusto de Campos, que destacaram a centralidade da forma, da mancha gráfica e da possibilidade de cotejo crítico entre original e tradução como parte essencial da experiência poética (Campos, 2006), essa omissão representa uma perda sensível. Em uma obra marcada pelo ritmo, pela oralidade e pela hesitação performática, a supressão do original restringe a experiência do leitor e impossibilita o contato direto com a materialidade da língua de origem.
Por outro lado, essa ausência intensifica o papel da tradutora como mediadora plena da experiência textual. A voz de Alana Carolina Martins é, aqui, a única via de acesso à poética de Lana Del Rey, uma escuta que se converte em escrita, e uma presença que se constrói na reinvenção do outro. Nesse sentido, a tradução se configura como uma operação crítica e criativa: exige não apenas conhecimento técnico, mas uma forma particular de leitura: uma leitura que é também escrita.
Nesse equilíbrio entre ganhos e lacunas, o projeto da Belas Letras ainda se destaca pela forma como constrói um ambiente editorial receptivo à poesia de Del Rey, tratando a autora com seriedade estética e sem subestimar o leitor. Ao lado da tradução atenta de Alana Carolina Martins, essa edição configura uma rede de escuta, curadoria e transposição poética que, mesmo incompleta, contribui para a inscrição de Violet no panorama da poesia contemporânea em tradução, um gesto necessário, sobretudo quando se trata de uma autora que ocupa simultaneamente o campo da cultura de massa e da expressão poética íntima.
Se a materialidade do livro e suas mediações editoriais já operam um primeiro reenquadramento da obra, é a partir dos próprios poemas e de sua tradução que se delineia com mais nitidez o projeto estético de Lana Del Rey enquanto poeta. Sua escrita é atravessada por um lirismo fragmentário, permeado por imagens de colapso afetivo, vazio existencial e desejo difuso. A voz que emerge nesses textos hesita entre a confissão íntima e a performance construída, entre o sublime do amor romântico e a banalidade do cotidiano norte-americano. Há, em sua poética, uma constante fricção entre a cultura pop e a tradição literária, entre o gesto aparentemente espontâneo e o artifício deliberado em um jogo de tensões que equilibra corpo, objeto e livro. Essa dinâmica confere densidade simbólica a versos que, à primeira leitura, podem parecer simples ou narrativos demais, mas que operam por camadas, talvez simbolizando, de forma metonímica, a própria acrobacia da imagem central do poema que dá título à obra.
Essa duplicidade entre a vulnerabilidade emocional e a construção estética da figura pública define boa parte de seu projeto: Lana Del Rey não escreve como quem deseja esconder-se sob o texto, mas como quem o transforma em espelho e mise-en-scène. Seus poemas frequentemente operam como monólogos ou cartas não enviadas, dirigidas a cidades, amores, memórias e paisagens. E mesmo quando a linguagem parece fluir com oralidade despretensiosa, ela guarda uma economia de ritmo e pausa, sustentada por repetições, quebras de frase e ecos sutis de imagens anteriores. Trata-se de uma escrita em que o tempo psicológico se sobrepõe ao tempo narrativo, e onde a voz lírica se mostra ora devastada, ora cínica, ora devotada a uma beleza que não a redime, mas que a encanta e nos desperta.
Nesse contexto, traduzir a poesia de Lana Del Rey não é apenas verter versos para outro idioma, mas recriar o efeito dessa tensão estética entre intimidade e superfície, entre voz e artifício. A tradutora precisa lidar não só com as imagens, mas com os silêncios, os ritmos quebrados e a atmosfera onírica que paira sobre os poemas. É nesse desafio de traduzir não apenas o que é dito, mas como se diz, quando se cala, o que se repete, que se revela a complexidade do trabalho de Alana Carolina Martins.
A seguir, analisaremos alguns dos poemas que melhor exemplificam esse universo poético e as soluções tradutórias que procuram recriá-lo em língua portuguesa.
Violet Bent Backwards Over the Grass |
Violet Faz a Ponte Sobre a Grama |
|
01 | I went to a party | Fui a uma festa |
02 | I came in hot | cheguei animada |
03 | made decisions beforehand | tomei decisões antecipadamente |
04 | my mind made up | minha mente inventou |
05 | things that would make me happy | coisas que me fariam feliz |
06 | to do them or not | fazendo-as ou não |
07 | each option weighed quietly | cada opção ponderada silenciosamente |
08 | a plan for each thought | um plano para cada pensamento |
09 | But then I walked through the door | Mas aí passei pela porta |
10 | past the open concept | além do conceito aberto da casa |
11 | and saw Violet | e vi Violet |
12 | bent backwards over the grass | fazendo a ponte sobre a grama |
13 | 7 years old with dandelions grasped | 7 anos de idade com dentes-de-leão apertados |
14 | tightly in her hands | firmemente em suas mãos |
15 | arched like a bridge in a fallen handstand | arqueada como uma ponte em uma parada de mãos caída |
16 | grinning wildly like a madman | sorrindo exageradamente como uma louca |
17 | with the exuberance that only doing nothing can bring | com a exuberância que apenas fazer nada torna propício |
18 | waiting for the fireworks to begin | esperando o início dos fogos de artifício |
19 | and in that moment | e naquele momento |
20 | I decided to do nothing about everything | decidi fazer nada em relação a tudo |
21 | forever. | pra sempre. |
Fonte: Del Rey (2020, não paginado); Del Rey (2025, não paginado).
O poema que dá título ao livro é também uma espécie de cifra de seu projeto poético: breve, visual, ambíguo, marcado por uma sensibilidade performativa que combina o lirismo íntimo e imagens em estado suspenso. Sua força reside na imagem central, Violet bent backwards over the grass, que apresenta simultaneamente uma personagem, um gesto corporal e um recorte visual. “Violet”, nome próprio e nome de flor, está curvada para trás sobre a grama, num movimento que evoca tanto a elasticidade da infância quanto uma posição de vulnerabilidade ou exposição ritualizada. O verso opera como figuração poética do corpo feminino em trânsito entre a leveza e o colapso, a brincadeira e o abismo.
A justaposição entre sujeito, ação e paisagem, sem pontuação intermediária, evidencia o uso ostensivo de enjambement como recurso de condensação rítmica e imagética, característica da poesia lírica contemporânea que flerta com o discurso narrativo, mas mantém uma tensão sintática latente. Tal estrutura se alinha ao que Stephanie Burt denomina elliptical poetry (Burt, 2009): uma forma que evita resoluções claras, opera por sugestões e permite que a voz poética se manifeste por desvios, lacunas e fragmentações subjetivas[3].
A tradução como Violet faz a ponte sobre a grama adota uma estratégia de equivalência funcional e cultural, substituindo o verbo bent backwards pela expressão idiomática brasileira “fazer a ponte”. Trata-se de uma solução criativa e eficaz, pois preserva o gesto físico evocado no original comum em práticas corporais infantis e o inscreve no imaginário corporal do leitor brasileiro. Essa escolha pode ser compreendida como um exemplo de domesticação produtiva, nos termos de Lawrence Venuti (2008), ao oferecer uma imagem culturalmente reconhecível sem sacrificar a densidade poética do original[4].
No entanto, bent no original não é apenas um gesto físico: trata-se de um particípio de valor ambíguo, que sugere torção, desvio, arqueamento. Trata-se de um corpo que não apenas se dobra, mas se submete, se transforma, se tensiona com o mundo. Essa ambiguidade semântica se perde parcialmente na tradução, que opta por uma imagem mais estável e codificada. O custo, portanto, é a perda da polissemia do termo, o que compromete, ainda que discretamente, a dimensão simbólica da torção, um gesto que, no poema, ecoa na decisão final de “fazer nada em relação a tudo”.
Ainda assim, a tradutora Alana Carolina Martins compensa essa perda com uma série de acertos rítmicos e imagéticos. Sua versão respeita o fluxo sintático livre do verso, a ausência de pontuação e o caráter visual da mancha gráfica. Traduzir poesia é transcriar não apenas o conteúdo, mas também o ritmo interno, a estrutura respiratória do poema. Alana se aproxima dessa operação ao manter a fluidez da fala, a simetria entre verso e pausa, e a dicção contida que caracteriza a escrita de Del Rey. Trata-se de um bom exemplo do que Haroldo de Campos chamaria de transcriação (Campos, 2006): uma tradução que inventa dentro da escuta.
É possível, contudo, perceber ao longo da tradução um uso frequente de advérbios (silenciosamente, firmemente, exageradamente, propício) que, embora se mantenham fiéis à construção lexical do original, por vezes imprimem ao texto em português uma rigidez sonora ou explicativa. Esse excesso pode reduzir a opacidade poética dos versos, comprometendo o movimento flutuante que caracteriza a voz lírica. Apesar disso, o trabalho da tradutora revela um esforço consciente de recriar musicalidade na língua de chegada, lançando mão de rimas internas, aliterações, assonâncias e cadências que favorecem a escuta do poema em português. A tradução não apenas comunica, mas canta. Nesse canto reside sua força.
Do ponto de vista crítico, o poema também pode ser lido como figuração performática do feminino: um corpo em dobra, uma voz lírica que se reconhece em uma criança arqueada sobre a grama, segurando dentes-de-leão, esperando por fogos que ainda não começaram. A performatividade aqui não é apenas estética: ela é política e existencial. E a tradutora acompanha essa camada de sentido com sensibilidade, entregando uma versão que preserva o equilíbrio entre a singeleza do gesto e o peso simbólico que ele carrega.
Poderíamos dizer que a tradução aqui se configura como uma forma de leitura crítica que responde ao poema com outro poema. A escuta, nesse caso, não é passiva, mas interpretativa e recriadora. Violet faz a ponte sobre a grama é, assim, uma solução poética que mantém o corpo em cena, o ritmo em suspensão e o silêncio como parte do sentido.
LA Who am I To Love You? | LA, Quem Sou Eu Para Te Amar? | |
001 | LA, I’m from nowhere, who am I to love you? | LA, eu venho de lugar nenhum quem sou eu para te [amar |
002 | LA, I’ve got nothing, who am I to love you | LA, não tenho nada quem sou eu para te amar |
003 | when I’m feeling this way | se me sinto assim |
004 | and I’ve got nothing to offer | e tenho nada a oferecer |
005 | LA | LA |
006 | not quite the city that never sleeps | não é bem a cidade que nunca dorme |
007 | not quite the city that wakes | não é bem a cidade que acorda |
008 | But the city that dreams for sure | Mas a cidade que sonha com certeza |
009 | if by dreams you mean in nightmares. | se por sonhos você quer dizer pesadelos. |
010 | LA | LA |
011 | I’m a dreamer but | Sou uma sonhadora mas |
012 | I’m from nowhere who am I to dream | Eu venho de lugar nenhum quem sou eu para sonhar |
013 | LA | LA |
014 | I’m upset! | Estou chateada! |
015 | I have complaints! | Tenho reclamações! |
016 | Listen to me | Me escute |
017 | They say I came from money and I didn’t and I [didn’t even have | Dizem que eu venho de uma família rica mas não [venho e eu nem |
018 | love and it’s unfair | mesmo fui amada e isso é injusto |
019 | LA | LA |
020 | I sold my life rights for a big check | Vendi os direitos da minha vida por um grande [cheque |
021 | but now I can’t sleep at night and I don’t know why | mas agora não consigo dormir à noite não sei o [porquê |
022 | plus I love Saks so why did I do that when I know | além disso eu ama a Saks então por que fiz isso [quando sei |
023 | it won’t last | que não vai durar |
024 | LA | LA |
025 | I picked San Francisco because the man who [doesn’t love me | Escolhi São Francisco porque o homem que não me [ama |
026 | lives there | mora lá |
027 | LA! | LA! |
028 | I’m pathetic | Eu sou patética |
029 | but so are you | mas você também é |
030 | can I come home now? | posso voltar para casa agora? |
031 | Daughter to no one | Filha de ninguém |
032 | table for one | mesa para um |
033 | party of thousands of people I don’t know at [Delilah | festa para milhares de pessoas que eu não conheço no [Delilah |
034 | where my ex-husband works | onde meu ex-marido trabalha |
035 | I’m so sick of this | Estou tão farta disso |
036 | But | Mas |
037 | can I come home now? | Posso voltar para casa agora? |
038 | Mother to no one | Mãe de ninguém |
039 | private jet for one | jatinho particular para um |
040 | Back home to the Tudor house that borned a [thousand murder | de volta para a casa estilo Tudor que deu origem a [mil planos de |
041 | plots | assassinato |
042 | Hancock Park treated me very badly I’m resentful. | Hancock Park me tratou muito mal estou ressentida. |
043 | The witch on the corner | A bruxa na esquina |
044 | the neighbor nobody wanted | a vizinha que ninguém queria |
045 | the reason for Garcetti’s extra security. | o motivo pelo qual Garcetti tem segurança reforçada. |
046 | LA! | LA! |
047 | I know I’m bad but I have nowhere else to go can I [come | Eu sei que eu sou má mas não tenho nenhum outro [lugar para |
048 | home now? | ir posso voltar para casa agora? |
049 | I never had a mother | Eu nunca tive uma mãe |
050 | will you let me make the sun my own for now | você vai me permitir que eu faça o sol ser meu agora |
051 | and the ocean my son | e o oceano meu filho |
052 | I’m quite good at tending to things despite my [upbringing | Sou muito boa em lidar com as coisas apesar da [forma como fui criada |
053 | Can I raise your mountains? | Posso erguer suas montanhas? |
054 | I promise to keep them greener make them my [daughters | Eu prometo mantê-las mais verdes fazê-las minhas [filhas |
055 | teach them about fire warn them about water | ensiná-las sobre incêndios alertá-las sobre a água |
056 | I’m lonely LA | Me sinto sozinha LA |
057 | can I come home now? | posso voltar para casa agora? |
058 | I left my city for San Francisco | Abandonei minha cidade para viver em São [Francisco |
059 | I’m writing from the golden gate bridge but it’s not [going | Escrevo da golden gate bridge mas não está saindo |
060 | as I planned | como planejado |
061 | I took a free ride off a billionaire and brought my | Peguei carona com um bilionário e trouxe minha |
062 | typewriter and promised myself that I would stay | máquina de escrever e prometi a mim mesma que [ficaria |
063 | but | mas |
064 | it’s just not going the way that I thought | não está saindo como imaginei |
065 | it’s not that I feel different | não é que eu me sinta diferente |
066 | and I don’t mind that it’s not hot | e não me importo que não esteja quente |
067 | It’s just that I belong to no one, which means | só que eu não pertenço a ninguém, o que significa |
068 | there’s only one place for me | que só há um lugar para mim |
069 | the city not quite awake | a cidade não tão acordada |
070 | the city not quite asleep | a cidade não tão adormecida |
071 | the city that’s something else – something in [between | a cidade que é algo mais – algo no meio do caminho |
072 | the city that’s still deciding | a cidade que ainda está decidindo |
073 | how good it should be | o quão boa pode ser |
074 | and also | e também |
075 | I can’t sleep without you | Não consigo dormir sem você |
076 | No one’s ever really held me like you | Ninguém jamais realmente me segurou como você |
077 | Not quite tightly
|
não exatamente com firmeza |
078 | but certainly I feel your body next to me | mas certamente sinto seu corpo perto de mim |
079 | smoking next to me | fumando perto de mim |
080 | vaping lightly next to me | usando vape suavemente perto de mim |
081 | and I love that you love the neon lights | e eu amo que você ame as luzes neon |
082 | like me | como eu |
083 | Orange | Laranja |
084 | in the distance. We both love that and I love that we [have | à distância. Nós dois amamos isso e eu amo termos |
085 | that in common. | isso em comum. |
086 | Also neither one of us can go back to New York. | Além disso nenhum de nós pode voltar a Nova York. |
087 | For you, are unmoving. | Você, é imóvel. |
088 | As for me, it won’t be my city again until I’m dead. | Quanto a mim, não será minha cidade novamente até que eu morra. |
089 | Fuck the New York Post! | Foda-se o New York Post! |
090 | LAAAAA! | LAAAAA! |
091 | who am I to need you when I’ve needed so much | Quem sou eu para precisar de você quando já precisei tanto |
092 | asked for so much | pedi tanto |
093 | what I’ve been given I’m not sure yet sure I may [never know that either | e o que recebi não tenho certeza talvez eu nunca saiba também |
094 | until I’m dead. | até que eu morra. |
095 | For now though | Mas por enquanto |
096 | what I do know is that I don’t deserve you– | o que eu sei é que não te mereço – |
097 | not you at your best, in your splendor with [towering | não você no seu melhor, no seu esplendor com imponentes |
098 | eucalyptus trees that sway in my dominion | eucaliptos que balançam no meu reino |
099 | not you at your worst– | Não você no seu pior – |
100 | totally on fire, unlivable, unbreathable. | totalmente em chamas, inabitável irrespirável. |
101 | I don’t deserve you at all | Não mereço você nem um pouco |
102 | You see– You have a mother | Veja bem – Você tem uma mãe |
103 | A continental shelf | uma plataforma continental |
104 | a larger piece of land from where you came | um pedaço de terra maior de onde veio. |
105 | And I am an orphan | E eu sou uma orfã |
106 | A little seashell that rests upon your native shores | uma pequena concha que repousa sobre suas costas [nativas |
107 | one of many that’s for sure but because of that | uma de muitas tenho certeza mas por conta disso |
108 | I surely must love you closely to the most out of anyone. | Eu certamente devo te amar de perto mais do que [qualquer outra pessoa. |
109 | For that reason– | Por este motivo – |
110 | Let me love you | Me deixe te amar |
111 | don’t mind my desperation | não ligue para meu desespero |
112 | let me hold you not just for vacation but for real [and forever | me deixe te abraçar não só nas férias mas de verdade [e para sempre |
113 | Make it real life, let me be a real wife to you. | Torne a vida real, me deixe ser uma esposa de [verdade para você. |
114 | Girlfriend, lover, mother, friend. | Namorada, amante, mãe, amiga. |
115 | I adore you | Eu te adoro |
116 | Don’t be put off by my quick-wordedness | Não se deixe abalar pelas minhas palavras rápidas |
117 | I’m generally quite quiet, quite a meditator | Eu geralmente sou bem quieta, bastante meditativa |
118 | actually I’ll do very well down by Paramhansa [Yogananda’s | na verdade vou me dar muito bem no templo de [realização do |
119 | Realization center I’m sure. | Paramhansa Yogananda tenho certeza. |
120 | I promise you’ll barely even notice me | Prometo que você nem vai me notar |
121 | unless you want to notice me | a não ser que queira me notar |
122 | unless you prefer a rambunctious child | a não ser que prefira uma criança indisciplinada |
123 | in which case I can turn it on too! | nesse caso posso ser isso também! |
124 | I’m good on the stage as you may know, you might [have heard of me? | Sou ótima no palco como deve saber, talvez já tenha [ouvido meu nome? |
125 | So either way I’ll fit in just fine | Então de qualquer forma vou me encaixar muito bem |
126 | so just love me by doing nothing | então apenas me ame sem que eu faça nada |
127 | except for perhaps by not shaking the county line. | exceto talvez por não mexer com a divisa do [condado. |
128 | I’m yours if you’ll have me | Eu sou sua se você me quiser |
129 | quietly or loudly | silenciosa ou estrondosamente |
130 | sincerely your daughter | sinceramente sua filha |
131 | regardless | independentemente |
132 | you’re mine. | você é minha. |
Fonte: Del Rey (2020, não paginado); Del Rey (2025, não paginado).
Esse poema funciona como uma espécie de carta-confissão dirigida à cidade de Los Angeles. O tom é elegíaco, oscilando entre o desejo de pertencimento e a consciência do exílio afetivo. O recurso ao apostrophe, figura de linguagem em que a voz lírica se dirige a um interlocutor ausente, inanimado ou abstrato, estabelece um clima de oração laica, em que a cidade assume o papel de entidade afetiva e indiferente. A repetição da pergunta “Who am I to love you?” evidencia um lirismo performativo, em que a voz não busca respostas, mas inscreve a própria fragilidade como um gesto dramático e íntimo.
Na tradução, “LA, quem sou eu para te amar?”, opta-se por preservar com precisão o pathos ambíguo do verso original. LA é, evidentemente, a sigla da cidade, mas funciona também como vocativo polissêmico: poderia ser uma mulher? A própria voz lírica? Uma amiga? Uma mãe? Uma amante? Um homem? A si mesma? Esse deslocamento referencial, fundamental à poética de Lana Del Rey, é mantido na versão em português, que preserva a ambiguidade entre o espaço urbano e a interlocução subjetiva. Alana Carolina Martins adota, em geral, uma sintaxe direta e fluida, que respeita a respiração interna do poema e mantém a cadência do discurso falado.
Os versos seguintes, que descrevem o desejo da narradora de ser amada, lembrada e acolhida, conservam o tom de súplica, conferindo ao poema uma tonalidade vulnerável, melancólica e ao mesmo tempo afirmativa. A cidade surge aqui como metáfora de um imaginário americano em colapso, e essa leitura é reforçada por alusões a traumas históricos, desigualdades raciais, violência estrutural e desilusão social. Los Angeles, como em outras instâncias da literatura norte-americana contemporânea, torna-se alegoria de uma promessa falha, uma utopia despedaçada.
Esse poema é exemplar do que críticos como Stephanie Burt, como já mencionado, definem como elliptical poetry: uma forma lírica contemporânea marcada por uma voz subjetiva que hesita, se retrai e reaparece, articulando lacunas, desvios e mutações discursivas. A tradução consegue preservar em boa medida esse caráter elíptico e flutuante, respeitando as pausas, os silêncios e os desvios sintáticos do verso livre. Destaca-se também a atenção da tradutora à musicalidade interna dos versos. Para isso, Alana recorre a recursos que buscam recriar o ritmo emotivo que sustenta a arquitetura do poema. Ainda que não se trate de uma poesia pautada por métrica fixa ou esquema rímico tradicional, há um pulso sonoro e afetivo constante, que se traduz com sensibilidade na versão brasileira.
Um exemplo de alusão rítmica e eufônica bem-sucedida pode ser observado na tradução dos versos 56–57:
I’m lonely LA
can I come home now?
Me sinto sozinha LA
posso voltar para casa agora?
A repetição do /s/ e do /a/ na versão em português — “sozinha, LA / voltar, casa, agora” — cria uma cadência suave e melancólica, que ecoa o tom vulnerável do original, reproduzindo um tipo de ritmo suspenso e reiterativo típico do discurso confessional.
Outro bom exemplo é a recriação sonora nos versos 017–018:
They say I came from money and I didn’t and I didn’t even have love
Dizem que eu venho de uma família rica mas não venho e eu nem mesmo fui amada
Aqui, a repetição de sons abertos e a construção sintática anafórica conferem à tradução um balanço oral e sincopado, que reforça a sensação de desabafo emocionado.
Mesmo em passagens mais narrativas, Alana preserva o encadeamento rítmico do fluxo de consciência. Veja-se, por exemplo, os versos 020–023:
Vendi os direitos da minha vida por um grande cheque /
mas agora não consigo dormir à noite não sei o porquê /
além disso eu amo a Saks então por que fiz isso /
quando sei que não vai durar
Apesar da extensão e da fluência coloquial, a tradutora mantém o encadeamento sintático e melódico do verso livre, reforçado por repetições como “não consigo”, “não sei”, “não vai durar”, que criam um refrão melancólico, quase musical.
Nos versos 054–055, há um exemplo de paralelismo fonético e imagético:
Eu prometo mantê-las mais verdes / fazê-las minhas filhas / ensiná-las sobre incêndios / alertá-las sobre a água
A repetição do sufixo “-las”, bem como os verbos no infinitivo, conferem musicalidade regular e encadeada ao trecho, quase como um encantamento ou oração protetora, coerente com o tom devocional da voz lírica.
Em suma, embora haja momentos de literalidade que poderiam se abrir a mais invenção, a tradutora demonstra, em muitos trechos, sensibilidade rítmica e atenção ao som, recriando com fidelidade e afeto o tom confessional, fraturado e hipnótico da poesia original de Lana Del Rey.
No entanto, nem todos os momentos da tradução alcançam o mesmo grau de elaboração. Alguns versos soam excessivamente colados ao original, o que, embora seja uma escolha legítima em certos contextos, pode, em outros, empobrecer a complexidade polissêmica do texto de partida. Faltam, em alguns trechos, soluções mais criativas e sofisticadas que explorem os recursos da língua portuguesa de forma mais inventiva. Um exemplo é a tradução de “make them my daughters” por “fazê-las minhas filhas” — construção funcional, sobretudo dentro do paralelismo mencionado anteriormente, mas pouco expressiva diante das possibilidades oferecidas por verbos como “tornar”, “adotar” ou “erguer como filhas”, que carregam nuances mais ricas e poeticamente carregadas. Aqui, a tradução perde uma oportunidade de aprofundar a ambiguidade do gesto: não se trata apenas de tomar para si, mas de transformar paisagens em filiação simbólica, de inscrever-se no mundo pelo afeto e pela criação.
Esses momentos de literalidade excessiva criam uma ligeira fricção com a proposta poética da própria autora, cuja linguagem é feita de deslocamentos, alusões e camadas interpretativas. A escolha por manter certas estruturas muito próximas do inglês pode, por vezes, achatar o relevo emocional do verso ou tornar a sintaxe mais pobre do que a sensibilidade da autora permitiria.
Ainda assim, é importante ressaltar que a tradução de Alana Carolina Martins realiza uma escuta atenta e comprometida, revelando domínio do ritmo discursivo e da dimensão performática da escrita de Lana Del Rey. Sua versão brasileira de “LA Who Am I to Love You?” preserva o fôlego emocional da voz poética e oferece ao leitor um acesso legítimo e sensível à obra. Trata-se, pois, de uma tradução que acerta em muitas escolhas formais e afetivas, mas que poderia alcançar um grau ainda mais alto de potência poética ao se permitir mais liberdade criativa, justamente nos pontos em que o original se mostra mais sutil, polissêmico e ambivalente.
Em “SportCruiser”, outro poema longo que evito transcrever aqui por uma questão de espaço, mas cuja imagem reproduzo em fotos, a metáfora central reside no avião leve que a narradora deseja pilotar, mas não sabe controlar. O texto lida com temas como autonomia, fracasso e controle, tanto do corpo quanto do desejo. Aqui, a construção metafórica é mais narrativa, e a linguagem parece ainda mais próxima da prosa. No entanto, a disposição gráfica, a cadência dos encadeamentos sintáticos e o uso de repetição como ritmo interno revelam sua natureza poética.
A tradução de versos como “I wanted to be a pilot / but I was bad at flying” como “Eu queria ser uma piloto / mas não sabia voar” é simples, eficaz e sonora. A tradutora escolhe manter o tom coloquial e direto, sem tentar elevar artificialmente o nível de abstração. Essa escolha é coerente com a poética de Del Rey, que constrói imagens fortes justamente a partir da fricção entre o banal e o simbólico. O voo que falha aqui não é apenas literal: trata-se de um flight metaphor, tradicional na poesia em inglês para representar liberdade, ascensão ou transcendência e que aqui se frustra, colapsa, pousa em si mesma.
O poema também dialoga com uma tradição de escrita feminina que recusa a idealização do “empoderamento” e trabalha com zonas ambíguas do desejo, da incompetência e do medo, temas caros à famigerada confessional poetry e a poetas pós-modernas como Mary Oliver (1935 — 2019) e Louise Glück (1943 — 2023). A tradução, nesse contexto, preserva a atmosfera de inadequação e autoconhecimento em tom baixo, sem grandiloquência.
Sugarfish |
Sugarfish |
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01 | Lemme stick to something sweet | Deixe-me ficar com algo doce |
02 | sugar on my hands and feet | açúcar nas minhas mãos e pés |
03 | Sugarfish San Vincente | Sugarfish em San Vincente |
04 | sugar sugar in my teeth | açúcar açúcar em meus dentes |
05 | from your kiss you texting me | do seu beijo de você me mandando mensagens |
06 | from the movie theater seat | da poltrona do cinema |
07 | Dodger Stadium Slurpee | Slurpee do Dodger Stadium |
08 | white confection in the sea | confeitos brancos no mar |
09 | powder waves froth over me | ondas em pó espumam sobre mim |
10 | A fortune teller once told me | Uma vidente uma vez me disse |
11 | do things that you think are sweet and a sweet [man is sure to | faça coisas que você acha que são doces e um [homem doce certamente |
12 | follow. | virá. |
13 | So I made a bath that night of honey | Então naquela noite preparei um banho de mel |
14 | dipped my toes in rose and money | mergulhei os dedos dos pés em rosa e dinheiro |
15 | stayed all night in that bathwater | fiquei a noite toda naquela água do banho |
16 | even some I swallowed. | até engoli um pouco. |
17 | Now there’s so much sugar on me | Agora tem tanto açúcar em mim |
18 | I can’t keep the bees off of me | Não consigo afastar as abelhas de mim |
19 | even most of my thoughts are charming | até a maioria dos meus pensamentos são [encantadores |
20 | some are blue and borrowed | alguns são tristes e emprestados |
21 | Sugar sugar lips and teeth | Açúcar açúcar lábios e dentes |
22 | fingertips touch emojis | pontas dos dedos tocam emojis |
23 | hard forever | difícil para sempre |
24 | hearts on fleek | corações perfeitos |
25 | bb please come over | bb por favor vem aqui |
Fonte: Del Rey (2020, não paginado); Del Rey (2025, não paginado).
“Sugarfish” evoca, desde seus primeiros versos, o universo das nursery rhymes, as cantigas infantis da tradição anglo-americana, tanto pela simplicidade vocabular quanto pela cadência marcada por rimas, repetições e uma musicalidade quase lúdica. O poema parece emular o ritmo e a estrutura dessas cantigas para, em contraste, abordar temas de desejo, vulnerabilidade e identidade em chave irônica e afetiva. É justamente essa tensão entre forma e conteúdo que lhe confere espessura poética. A tradução, no entanto, parece menos bem-sucedida em comparação às demais do volume. Embora mantenha uma fidelidade semântica ao original, essa aderência excessiva ao plano do sentido compromete sua dimensão prosódica. Trata-se de um texto em que ritmo, som e encadeamentos melódicos não são mero adorno, mas parte integrante da significação. Ao optar por soluções mais literais, a tradutora sacrifica a musicalidade e a vivacidade do original, deixando de explorar com liberdade e invenção os recursos sonoros da língua portuguesa, algo particularmente desejável em poemas que se sustentam em pulsação, rima e melodia. Faltou, nesse caso, um gesto tradutório mais inventivo, capaz de recriar o tom quase encantatório do poema, com liberdade formal e atenção ao lirismo popular que ecoa na tradição de poetas como Emily Dickinson (1830 — 1886) e nas camadas orais da poesia estadunidense.
Em diversos momentos do livro, Lana Del Rey se reconhece e se reivindica como poeta. Esse gesto de autoafirmação não se dá em tom grandioso, mas como quem ensaia uma nova forma de presença no mundo. No poema “The Land of 1,000 Fires”, ela anota: “I am a writer, not a singer / a speaker of truth, not a dreamer”. Ao contrário de uma ruptura explícita com a imagem da “diva pop”, o que se observa é um deslocamento do centro criativo para a palavra escrita: a canção se transfigura em escrita, e a escrita se impõe como lugar de voz, de vulnerabilidade e de invenção. Lana Del Rey escreve como quem sussurra entre ruínas e palcos, como quem compreende que ser poeta é lidar com o excesso e a escassez, com a presença e o apagamento e, sobretudo, com a matéria da verdade. Essa consciência lírica, que atravessa os poemas com sua tensão entre intimidade e performance, encontra eco na edição brasileira, cuja tradução respeita os movimentos de hesitação, repetição e espessura afetiva que marcam a voz original.
Entre imagens conjuradas por palavras e fotografias, surge no livro uma curiosa seção dedicada aos haicais, forma breve de origem japonesa, tradicionalmente estruturada em três versos com métrica 5-7-5 (em sílabas poéticas, no original). Em Lana Del Rey, essa forma é revisitada com liberdade, mas mantendo o espírito de instantaneidade imagética e lirismo contido. Na tradução, Alana Carolina Martins opta por uma versão ao pé da letra, priorizando a simplicidade e a leveza da enunciação. A escolha é acertada: evita artificialismos e mantém o tom epigramático dos originais, mesmo quando o conteúdo beira o trivial ou o irônico. Há, nesses poemas breves, um humor melancólico e uma estética do inacabado que ressoam bem na versão em português, como no haicai que diz: “Poets– like comics / are inherently quite sad / better off alone”, traduzido com mínima intervenção, mas de maneira eficaz, “Poetas – como os comediantes / são inerentemente muito tristes / melhor a sós”, apesar da leve cacofonia e do advérbio ao pé da letra.
Se há alguma distância que o leitor brasileiro possa sentir ao longo da leitura, talvez ela se localize no alto grau de codificação cultural dos EUA, presente em nomes de ruas, bairros, marcas e figuras públicas que estruturam o imaginário da autora. Ainda assim, essa distância não inviabiliza a fruição poética; pelo contrário, ela pode intensificar o estranhamento que perpassa todo o livro: uma voz que fala do centro da cultura de massa com os olhos voltados para dentro.
Ao final, Violet faz a ponte sobre a grama é mais do que um experimento literário de uma artista consagrada: é um livro de poesia legítimo, frágil e incisivo, que conjuga voz, escuta, imagem e silêncio. A tradução de Alana Carolina Martins é precisa, musical e fiel ao gesto estético da autora. Não no sentido de submissão ao original, mas como quem compreende que traduzir poesia é, também, respirar com o poema.
Neste ano em que Lana Del Rey completa 40 anos, sua voz poética encontra novas formas de atravessar fronteiras, agora em português. Sua obra, como sua persona, continua a desafiar rótulos e a habitar territórios liminares: entre canção e poema, entre corpo e espectro, entre palco e página. E é nessa travessia que Violet se afirma: um livro de estreia que, paradoxalmente, nasce maduro e profundamente verdadeiro.
REFERÊNCIAS
BURT, Stephanie. The New Thing: The Object Lessons of Recent American Poetry. Boston Review, Cambridge, v. 34, n. 3, May/June 2009. Disponível em: https://www.bostonreview.net/articles/the-new-thing-the-object-lessons-of-recent-american-poetry-stephen-burt/. Acesso em: 28 jun. 2025.
CAMPOS, Haroldo de. Da tradução como criação e como crítica: metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 2006.
DEL REY, Lana. Violet Bent Backwards Over the Grass. New York: Simon & Schuster, 2020.
DEL REY, Lana. Violet faz a ponte sobre a grama. Tradução de Alana Carolina Martins. Caxias do Sul: Belas Letras, 2025.
LEFEVERE, André. Translation, Rewriting and the Manipulation of Literary Fame. London; New York: Routledge, 1992.
MILFORD, Nancy. Savage Beauty: The Life of Edna St. Vincent Millay. New York: Random House, 2001.
VENUTI, Lawrence. The Translator’s Invisibility: A History of Translation. 2. ed. London; New York: Routledge, 2008.
[1] … Millay was the first American figure to rival the personal adulation, frenzy even, of Byron, where the poet in his person was the romantic ideal. It was his life as much as his work that shocked and delighted his audiences. Edna Millay was the only American woman to draw such crwods to her. Her performing self made people feel they had seem the muse alive and just within reach. They laughted with her and they were moved by her poetry. Passionate and charming, or easy and loft, shw not only brought them to their feet, she brought them to her.
[2] Lefevere (1992, p. 6) define reframing como “a rewriting of texts […] in order to make them acceptable for a new audience”, processo no qual “practically every feature of the original may be changed … Changes will usually fall under three categories: change of language, ideology, and poetics of the original.”
[3] Elliptical poets try to manifest a person — who speaks the poem and reflects the poet — while using all the verbal gizmos developed over the last few decades to undermine the coherence of speaking selves. … Elliptical poems shift drastically between low (or slangy) and high (or naively ‘poetic’) diction. … The poets tell almost‑stories, or almost‑obscured ones.
[4] The illusion of transparency produced in fluent translation enacts a thoroughgoing domestication that masks the manifold conditions of the translated text.